sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Preciso de saber quem é o meu pai, pede a jovem

- Perguntei, tantas vezes, pelo meu pai. Quero saber quem é o meu pai?
- O teu pai morreu - ouviu, tantas vezes, a mãe dizer-lhe.
- Mas, quem é? Podes dizer-me quem é, devo ter outros irmãos, outra família...
Uma nuvem de silêncio se espalha sobre tudo o que tenha a ver com o pai, e isso sempre a entristeceu. Só metade dela parece existir.
- O teu pai já morreu - dizem-lhe também a avó e os tios.
- Mas, se morreu, porque não dizem quem foi, morto ou vivo, preciso do meu pai.
Nunca precisara dele como agora que a mãe morreu, com aquele mal maldito que ninguém pronuncia. Nunca pensara tanto nele como agora, mas como poderia encontrá-lo sem ajuda!
- Como imaginas o teu pai?
- Imagino-o bonito e boa pessoa. Talvez seja de Maputo ou de outra cidade e a minha mãe se tenha perdido dele, antes mesmo de eu nascer, talvez seja de uma vila à beira da estrada...
- Pode ser que a tua mãe te tenha dito a verdade.
- Sim, mas, mesmo morto, não deixa de ser o meu pai. Algo em mim me leva a não acreditar que está vivo.
Tantas perguntas!


sábado, 14 de outubro de 2017

O menino pastor

Outro problema são as crianças órfãs que ficaram sem pais .
Algumas sobrevivem sozinhas (ou quase), outras, alguém da comunidade diz: "eu crio-a, vou levá-la para minha casa". 
Muitas vezes, o que acontece é colocá-la ao seu serviço,  numa espécie de meninos escravos, como o guardador de gado, de quem falo, hoje. 
- Tenho 13 anos, vivo em Massinga e guardo gado.
- Tens um  grande o rebanho!
- Não sei quanta cabeças de gado tenho, porque não sei contar, nunca fui à escola. O rebanho é da família, a maior parte, mas também é de outras pessoas, tenho de ir duas vezes ao rio, de manhã e à tarde, para poderem beber água. Tenho inveja dos meninos que vão a escola.
- Talvez, um dia ainda, possas ir à escola.  

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Quando o sofrimento é tão visível...

A jovem não estava bem. Mas, não queria falar, sobre o que lhe ia na alma, e eu respeitava o seu silêncio, o baixar da cabeça sempre que lhe falava, as hesitações no diálogo...
- O que tens?
- Não tenho nada - respondia, invariavelmente.
Por que sofreria daquela maneira? Parecia ausente, a anos luz do sítio onde estava, como se uma força superior a encaminhasse para dentro de si e lhe fechasse todas as portas.
Estaria enamorada? Podia ser uma paixão de adolescente, por algum colega da escola ou outro rapaz. 
Era muito bonita, com uns olhos salientes e um olhar penetrante, de uma beleza que a mim me parecia não ser igual à das outras meninas, aliás, todas são mais ou menos distintas; nunca tinha estado em sítio, onde com tão pouca gente, trinta ou quarenta, a diversidade étnica fosse tão evidente.
Um dia perguntei-lhe:
- Tens irmãos?
- Não tenho da parte da mãe, morreram. Só tenho da parte do pai.
Não fiz qualquer comentário. Passadas semanas, quando a relação comigo era maior, disse-me:
- Já não tenho mãe, a minha mãe morreu. 
Baixou a cabeça. O silêncio tornou-se ensurdecedor. Por que me tinha falado apenas dos irmãos? Talvez, porque só perguntei por eles. Ou, talvez, pela impossibilidade de falar da morte da mãe, tal era o sofrimento. 
Pensamos que tudo é banal, que tudo é passageiro; mas percebi, e cada vez com maior clareza, que assim não é. 
Por mais que o mal aconteça a todos e se generalize, deixa marcas e muitas. Virá esta jovem a ter apoio psicológico que visivelmente precisa? Não sei, temo que não, estamos tão longe das sociedades organizadas que conhecemos na Europa que falar num sistema de saúde em Moçambique é uma quimera. 





quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Casamentos prematuros, meninas simplesmente "vendidas"

Falo com uma jovem de dezassete anos que me fala dos casamentos prematuros, do que se passa na sua aldeia e nas aldeias do distrito de Massinga, na província de Gaza. 
- Meninas de treze, catorze anos, são obrigadas a casar, com quem ofereça o maior dote; um dote que pode chegar às dezasseis cabeças de gado.
- É estranho ouvir isto, digo-lhe. 
- Mas é assim. Um pai que tem uma filha está já à espera que a menina cresça para poder vendê-la, sim, que mais não é do que uma venda. A criança é dada em casamento a quem pode pagar mais por ela, seja novo ou velho, pode ser da idade dos pais ou até dos avós.
Oiço e penso na dura realidade destas meninas, na desdita que costumes ancestrais impõem. Na quase impossibilidade de sair disto, de como a modernidade está a anos luz, mesmo que haja traços exteriores, como a T-shirt, os jeans, a mochila…, duma modernidade globalizada que parece chegar a todo o lado, mas que, afinal, não.
Há redutos culturais  impenetráveis. Já não julgávamos isto possível.


terça-feira, 10 de outubro de 2017

Fugir de um destino, a menina orfã

É uma menina de catorze ou quinze anos. Corpo de adolescente, alta, magra, cabelo muito curtinho. O andar um pouco desajeitado, sempre de telemóvel na mão, um pouco agitada e com um olhar triste. Está no colégio há menos de um ano. Veio, porque a tia achava que ela só brincava – diz-me. Veio para estudar, passou para a 6ª classe, mas com dificuldades enormes de leitura e escrita. 
Talvez, tenha vindo para não se perder numa qualquer estrada ou esquina da vida. Veio, porque precisava sair de um ambiente que não podia ajudá-la. Isso é certo. Temendo que seja órfã e não sabendo até que ponto quer ou não falar sobre isso, nada pergunto, espero que fale, o máximo a que me atrevo é perguntar-lhe: 
- Quantos irmãos tens?
- Tenho dois irmãos, eu sou a mais velha, eles são mais novos, vivia com a minha avó, os meus irmãos estão com os pais deles. A minha mãe morreu, o meu pai morreu, o meu avô morreu...
Sinto um calafrio, até onde irá a lista que parece interminável?
Fico em silêncio. O que sei eu? Imediatamente, pensamos que foi a sida que os levou, mas talvez tenham morrido de malária, de desastre rodoviário ou de outra qualquer doença. 
A causa da morte não é indiferente, por estes lados, há um estigma, um não dito, que acompanha a vida destas crianças, cujos pais morreram de sida, como se, por não se nomear, tal doença desaparecesse. Ela carrega um grande sofrimento, mas não um destino. Por isso, está aqui. Vai estudar e ser alguém na vida.



segunda-feira, 9 de outubro de 2017

O jovem artista

Encontrei-o, ao final da manhã, na marginal de Maputo, junto ao cais, onde se apanha o barco para Catembe. Segurava, numa das mãos, um conjunto de telas e tentava vender-me uma (ou as que pudesse, claro está). 
Diz-me: "Olá, senhora, veja as minhas pinturas, sou eu que pinto, sou um artista"!
"Sim, mas agora não tenho tempo, não quero comprar, não quero". E continuo, apressando o passo.
-"Fico à sua espera, quero mostrar-lhe o meu trabalho" - diz-me.
E ficou. Primeiro, era só para que eu visse as telas, mas depois usou todos os argumentos e mais um, insistindo sempre, mas sem ser, em nenhum momento, desrespeitoso ou incomodativo, pelo contrário, havia nos olhos daquele jovem uma bondade que me chegava, e depois era encantador a forma como falava da sua vida e da sua sensibilidade de artista. Estava convencida que era um artista, na assinatura lá estavam as iniciais do seu nome.
Escolhi uma das telas, e comprei-a. "Vou fazer um quadro e, quando o olhar, pensarei: onde estará o Paulo, o jovem artista moçambicano que, num dia de Novembro de 2010, encontrei na marginal de Maputo? Talvez, seja agora um artista famoso, espero que sim" - digo-lhe.
No dia seguinte, quebrou-se a magia, enquanto passeava pela baixa da cidade encontrei muitos “Paulos”, jovens (todos artistas) que vendem telas, todas iguais, usando exactamente as mesmas estratégias. Achei graça, é óbvio que para mim tanto importava. Aliás, se voltar a encontrar o Paulo, tratá-lo-ei por artista, vou falar-lhe de tintas e pincéis, de sentimentos e paisagens africanas, como no dia do nosso primeiro encontro. Ele pode não ser artista, mas carrega uma alma de artista. E isso é o que importa.


sábado, 7 de outubro de 2017

O jovem que queria ser padre

ELE me chamou”, diz-me um jovem que está terminar o 12º ano, com um livro na mão, sobre a vida e obra dos Franciscanos. Ele é o seu, o meu, o Deus de todas as pessoas que acreditam. Nenhuma demonstração ou experiência atesta a Sua existência, mas nada mais real para um crente.
Acerca da fé, nada há a discutir. Nada há a dizer. A sua importância é indiscutível, somos, todos, antes de tudo o mais, aquilo em que acreditamos. São os valores, as crenças e os costumes que nos habitam que fazem as pessoas que somos e determinam a vida que queremos ter. Não é pouco, convenhamos.
Tinha combinado encontrar-se comigo para falar de filosofia, embora já tivesse feito exame e tivesse a certeza de que ia ter positiva. Colocou-me uma questão de lógica, sobre silogismos hipotético-disjuntivos (a que eu não soube responder, há mais de doze anos que não toco nessa matéria), mas percebi logo que a conversa sobre filosofia era um pretexto, queria conversar sobre outras coisas. 
Falou de si, da sua vocação, de como tem clara a ideia de ser padre franciscano, falou-me de todo o percurso de formação, passando por várias cidades e até países, do extenso caminho e da profundidade do percurso que pretende iniciar. Agora, irá para o seminário em Chimoio, depois para o noviciado em Portugal, a seguir para Roma, depois para a Zâmbia…
Perguntou-me o que achava. O que ia eu achar! Obviamente que não tenho nenhuma resposta, nenhuma opinião. "A religião é uma coisa muito séria", comentei, apenas, para não ficar calada. 
Ele continuou a falar da certeza da sua escolha e eu pus-me a pensar na determinação deste jovem, na sua convicção. Espero que o seu caminho não tenha muitas pedras. Tropeçar pode fazer parte, bem sei, mas ele merece não se desiludir.


segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Uma jovem da 5ª classe

Uma outra jovem, desse grupo de quatro, a quem apoio, na recuperação da leitura e escrita, manifesta as mesmas dificuldades, não domina minimamente a técnica, nem os casos especiais...,  a sua oralidade é muito restrita.  Tem um discurso pouco articulado, gramaticalmente, pouco fluido, sem grande vocabulário; falo com ela quase em monossílabos, frases sempre cortadas, às vezes, parece que não ouve bem (na verdade tem um problema de audição). Mas resiste. Quer sempre continuar, Nunca está cansada, quer sempre fazer mais coisas.
Nesse dia, prometo-lhe:
- Só me vou embora, quando aprenderes a ler. Estás quase a ler. Não te preocupes, vou ensinar-te a ler e a escrever. 
Não seria apenas crença, seria uma realidade, se houvesse outras condições, apenas, algum material de apoio, livros de iniciação, cadernos de exercícios...
Ela olha-me com uma doçura que é um misto de alegria e de ´compromisso, acreditando no que lhe digo. E pode acreditar.

quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Dificuldades de leitura e escrita (2)

É a jovem mais crescida do grupo, mas, porventura, a que apresenta maiores dificuldades, não domina minimamente a técnica da leitura e da escrita. 
Esteve novamente comigo, aliás, tem estado todos os dias. Costuma ir à escola de manhã e à tarde está comigo, começa o trabalho contra feita, mas depressa se entusiasma, tem consciência das dificuldades, às vezes, desespera. 
Naquele dia, inesperadamente, começou a chorar. É tão difícil ver alguém chorar! É impossível de descrever o que senti, quando a vejo soluçar, parece-me tão desprotegida, tão frágil, tão sozinha, tão sofrida por dentro... 
Estas crianças quase já não choram. Ali, ficam, num certo abandono que é um misto de cansaço e de descrença, entre pensamentos que não descortino, como se algo as atingisse no mais íntimo de si mesmas, sem poderem fazer seja o que for.



quarta-feira, 27 de setembro de 2017

As dificuldades de leitura e escrita

Quase já não há meninas no colégio, uma a uma, vão indo embora, logo que terminam os exames. Vão de férias grandes, as que podem, muitas regressarão para o novo ano letivo, no final de Janeiro. 
Hoje, uma jovem da Beira, viajou para a sua terra, estava tão empolgada! Disse-me: dormi tão pouco! 
Esteve comigo durante alguns dias para recuperação da leitura e escrita, recuperou alguma coisa, mas não sei se consolidou a aprendizagem, falta um trabalho sistemático;  o trabalho que posso fazer é muito desorganizado, muito partido, sem material de apoio,  sem livros, a não ser o das jovens, mas que não ajuda nada porque elas lêem de cor de trás para a frente.
Eu que deixei o meu trabalho no ensino básico há tantos anos, tenho de fazer um esforço de memória para inventar frases, pequenos textos, exercícios. 

domingo, 24 de setembro de 2017

Viagem de machimbombo, para Inhambane

Junto aos autocarros, machimbombos, vende-se de tudo: bolachas de todas as qualidades, água, pão, capulanas, utensílios vários, produtos de higiene, um sem número de coisas, e um sem número de vendedores que parece não acabar; há sempre mais um que eleva os braços mostrando a mercadoria a quem se prepara para viajar.
Há um mercado de rua a funcionar, é a sobrevivência mais absoluta, são quase todos jovens, mas também há mulheres. Mulheres com bacias à cabeça com garrafas de água; aparece alguém a quer vender catanas, algo insólito ou talvez não, muitos vão para o campo e talvez sejam necessárias.
É manhã cedo, mas tudo decorre como se estivessem pouco despertos, quase não falam.  Não há conversas, apenas, o indispensável para fazerem os negócios.
Quero comprar uma garrafa de água, mas não percebo bem.  Sou ajudada pelo senhor sentado no banco à minha frente.Todo o quotidiano e todas as conversas decorrem num dialecto que me é estranho, que não compreendo. Mas não sei por quê nunca me senti estranha. Sinto desde o primeiro momento que são pessoas boas, o que venho a confirmar em outras situações.

sábado, 23 de setembro de 2017

Chegada a Maputo

Apanho um táxi. Na avenida do aeroporto, há comércio, ao longo de toda a estrada, há oficinas e bancas sem fim, onde tudo se vende e se compra, num emaranhado de pessoas e de produtos que, aos os meus olhos, é caótico. 
Para lá destas margens, vislumbra-se um labirinto de casas, de insalubridade, de precariedade…, dizem-me que choveu no dia anterior e por isso há lama, poças de água… quando não, há pó, poeira. Uma África que bem conhecemos ao virar de cada esquina.
Três meninas recebem-me na missão de S. José de Lhanguene, são do internato Maria Clara, meninas órfãs, abandonadas, para quem restou a ajuda das Irmãs, depois das malfeitorias da vida. Sem outro apoio, crescem, vivem e fazem-se adultas. 

sexta-feira, 22 de setembro de 2017

Retomo este blog, depois de muitos anos

Deixei de escrever neste blog, porque a sua abertura coincidiu com a minha leitura do livro de Ingrid Betancourt "Até o silêncio tem um fim", sobre os mais de seis anos na selva colombiana. Há partes e descrições impressionantes,  mas, por vezes, ficamos a pensar até que ponto é legítimo falar, com  o pormenor e a subjectividade (inevitável) com que o faz, dos companheiros de cativeiro, por exemplo, de Clara Rojas (também li o seu livro e não fiquei com a mesma sensação). 
Senti um problema de consciência : até que ponto é justo falar de pessoas de forma tão direta, nomeando, descrevendo, opinando...?
Talvez, não seja, sobretudo, se de alguma maneira criar algum desconforto a terceiros. Vou evitar que isso aconteça, neste meu regresso aos textos que escrevi e guardo desde então.
Regresso à minha experiência humana, em Inhambane, Maputo e outros lugares de Moçambique.